quinta-feira, 30 de abril de 2009

Bom senso, senso comum e paixões

Bom senso é uma característica de personalidade que influencia a forma como abordamos as questões que surgem no nosso quotidiano, senso comum é um tipo de conhecimento alicercado no que é óbvio na sabedoria colectiva. Muitas vezes são noções que andam irmanadas, em tantas outras é bom que não estejam.

Considerar que é de bom senso estar sempre de acordo com o senso comum é o mesmo que dizer que é bom estar sempre de acordo com as maiorias. Um espírito desses deve ser mandado e jamais deve chegar a lugares de chefia. Nomeadamente, no contexto cultural em que vivemos, no qual o risco, a inovação e a aprendizagem são factores fundamentais na gestão seja do que for: empresas, associações, fundações, famílias, religiões, amigos, escolas, etc. Portanto, nos nossos dias ter bom senso deve ser independente do conhecimento do senso comum. Mais: o bom senso é capaz de compreender o senso comum, e aproximar-se dele quando fizer sentido, num dado momento e para um contexto específico. Mas quem assenta demasiado as suas escolhas diárias no senso comum dificilmente terá a liberdade para ponderar novos aspectos, para incluir novas e melhores ideias na sua acção, nomeadamente sempre que for confrontado com a necessidade de improvisar. E a capacidade de improvisação é cada vez mais solicitada pela nossa cultura.

Só uma visão empobrecida de liberdade é que priveligia a associação entre o bom senso e o objectivo de viver de acordo com o senso comum. As culturas fundamentadas nessa visão serão sempre conservadoras e dificilmente evoluem com a sua envolvente.

O bom senso também não deve ser encarado como um adversário da paixão. Pelo contrário, as emoções orientam as nossas escolhas e podem ser verdadeiros impulsionadores da racionalidade. As paixões dão-nos uma orientação duradora e impede-nos de viver ziguezaguiantes perante um ambiente complexo, diverso, cheio de oportunidades interessantes. Permitem-nos ver o futuro, assente em ideias, projectos ou visões. Por outro lado, como nos explica Reymond Boudon, o bom senso é a capacidade de em cada momento suportar uma ideia num "...sistema de razões suficientemente convincente para se impor e mais convincente que os sistemas de razões propostos pela defesa de asserções divergentes. (em O Relativismo)". É no decorrer dessas trajectórias, envolventes, que iremos alimentar o nosso conhecimento: lá se expressará o senso comum e muitos outros aspectos. Será em cada uma dessas experiências, profundas, que ganharemos densidade e dimensão. A paixão dá-nos capacidade de investir, exige-nos isso.

E por isso defendo que devemos encontrar várias paixões ao mesmo tempo - que se traduzirão numa ligação forte a várias razões, sobre as quais poderaremos o nosso quotidiano. Dessa forma preservamos o bom senso e mantemo-nos ligados simultaneamente a várias coisas que a vida nos oferece.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Globalização e sistema sócio-económico

Vivemos num tempo em que a ideia da existência de um mundo globalizado se tornou óbvia e notória. Mas isso não quer dizer que o significado da noção de globalização seja perceptível - considero que é ainda uma noção intuitiva, mas pouco compreendida.

Miuos consideram mesmo que a globalização é um projecto perigoso porque está estritamente ligada a um modelo sócio-económico, um modelo liberal e de economia de mercado. Neste contexto, há quem tenha a percepção de que, de alguma forma, existe sobreposição entre a dinâmica colectiva que aproxima culturas e as torna globalmente conectadas e os projectos político e/ou económicos específicos, baseado na pluralidade, na escolha individual, no mercado, etc.

Será assim? Isto é, existe uma ligação umbilical entre um qualquer programa político e o movimento de globalização? Ou entre a economia de mercado e a aproximação dos povos? Ou a globalização é um processo autónomo, excêntrico a qualquer plano político e civilizacional?

Esta dúvida pressupõe tacitamente a hipótese de que a globalização é um processo espontâneo, independente do conteúdo armazenados pelos humanos e do tipo de relações que estabelecem a partir desses conteúdos. Portanto, a globalização, nesta hipótese, é um movimento bio-social independente de qualquer estado lógico do sistema. Independente de qualquer cultura diferenciada.

Se assim for no debate político é errado fazer a sobreposição entre a globalização e um qualquer projecto social e político específico.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Antes de sermos da nossa cultura somos seres humanos.

Numa era globalizada não pode ser a tecnologia o único meio a fomentar a integração dos povos e das suas culturas. É imperativo que as formas de relacionamentos entre pessoas também evoluam. O planeta está a ficar mais apertado, os contactos entre povos com culturas diferentes é cada vez mais frequente e a forma de relacionamento com o outro terá de evoluir para dar resposta aos desafios colocados por esses desenvolvimentos.

O aumento da pressão social colocada pelo acréscimo dos confrontos entre diferentes impôe uma questão: como é que uma estrutura ética pode conciliar a manutenção das identidades com a promoção da conversação inter-cultural? No futuro próximo este é um dos grandes desafios da humanidade. Caso contrário continuaremos a ser regidos por estruturas éticas que incidem nos aspectos que dividem a humanidade, fomentando o conflito e interrompendo com frequência a conversação social e a aprendizagem.

O ser humano sempre se viu a si próprio como uma entidade especial no seio da natureza e do universo. As razões apontadas são várias: porque se relaciona de forma especial com o(s) criador (es) do universo, porque é o expoente máximo da evolução, porque é consciente dos seus actos, porque é um ser racional, porque é capaz de ter compaixão, de transformar a sua envolvente em proveito próprio, porque faz cultura ou porque desenvolveu uma linguagem extremamente complexa. Diferentes pessoas em diferentes épocas deram ênfase a estes e outros aspectos com o intuito de definir o ser humano.

Nada me leva a rejeitar qualquer um desses argumentos, mas rejeito qualquer leitura transcendental do seu conteúdo. O que é universal na humanidade é a nossa dimensão natural, enquanto seres evoluidos de uma linha filogenética comum. Tudo mais é imanente dessa condição. A nossa cultura é um prolongamento da nossa identidade biológica. Um prolongamento extraordinário, que nos distingue a todos no seio do universo, mas que em nada distingue o nosso valor enquanto seres humanos, pelo contrário, para estarmos aptos para acreditar em algo temos de nascer integralmente humanos. Nenhum ser humano é mais especial que qualquer outro porque nasceu e foi criado numa qualquer envolvência cultural específica. Rejeito qualquer leitura purificadora associada à cultura, seja ela qual for. Antes de sermos da nossa cultura somos seres humanos. Esse é o maior valor, e é a humanidade que nos cabe proteger.

A diversidade cultural faz parte do património da humanidade. Constitui-se como um fundo, reservatório de todo o conhecimento e valores da humanidade. E como a criatividade é subsidiária da diferença, cada ser por ser único é, em potência, mais uma fonte da criatividade humana. Em cada um reside parte das soluções para parte dos problemas da humanidade.

Por todos estes motivos a ética do futuro deve alicercar-se nos valores da identidade humana e da promoção da conversação e aprendizagem cultural: deve servir para proteger a diversidade cultural, deve saber promover o acesso ao reservatório de valores e conhecimentos da humanidade a qualquer cidadão do mundo, e deve contribuir para preservar o ser humano nas suas características fundamentais e promover o seu enriquecimento.