terça-feira, 22 de setembro de 2009

O problema da ética e do seu ajustamento ao mundo complexo

Finalmente acho que estou a conseguir identificar o problema que me levou a criar este blogue. Sei desde o início que tenho por objectivo desenvolver uma ética ajustada aos novos desafios da sociedade complexa. Mas isso é demasiado genérico. Tambem sei que a minha abordagem será alicerçada pela caracterização do sistema cognitivo: pelas novas teorias, conceitos e análises que leio e faço sobre o assunto.

Este interesse em desenvolver uma estrutura ética a partir do conhecimento das ciências cognitivas prende-se com os seguintes motivos: i. a ética é uma dimensão integrante da função cognitiva; ii. a nossa sociedade complexa é uma sociedade de produção; iii. esta sociedade de produção exige a todos os cidadãos a máxima expressão das suas competências; iv. essa exigência depende do bom funcionamento do sistema cognitivo, que depende da correcta gestão de espectativas; v. espectativas baixas não potenciam o individuo, espectativas altas criam dinâmicas de dissociação, logo a própria estrutura ética que nos governa deverá emanar da avaliação correcta das capacidades efectivas do ser humano.

Só assim, julgo eu, pedindo ao cidadão o que ele tem capacidade de cumprir e simultaneamente promovendo a sua evolução constante, será possível conciliar conhecimento e aprendizagem com felicidade individual.

Vivemos num ambiente social que exige sistematicamente resultados ao nível da economia, nas artes e cultura, nas relações familiares e entre amigos, na apredizagem formal e informal, no trabalho, etc. Por isso denominei-a aqui por sociedade de produção. Exigem-se resultados ao nível da produção individual, mas não só. Também se avalia a forma como cada um promove o crescimento do colectivo em que participa. Mais: a cada cidadão é pedido que contribua em quantidade (produção em série) e em qualidade (inovação). Ora isso requer que a capacidade intelectual de cada um seja capaz de lidar com tanta exigência.

Contrariamente ao que foi difundido no passado, para ultrapassar todos esses obstáculos não chega a racionalidade. Pelo menos tal como esta foi caracterizada no passado. Existem muitas outras dimensões cognitivas que são fundamentais para a promoção da boa função cognitiva.

Outro dos díficeis problemas com os quais nos deparamos é que na base desta exigência a sociedade diz que temos de ser simultaneamente criativos e realistas. Em boa verdade este pedido é ambivalente: a criação é sempre, e em parte, fruto de idealização e o realismo exige uma boa ligação aos estímulos que o ambiente faculta. Sabendo que o tipo de ética faz diferença na forma como cada cidadão pensa, se comporta e como se relaciona com os outros e com o seu ambiente em geral, diria que esta aparente contradição só pode ser resolvida no âmbito da renovação da estrutura ética que nos governa.

O objectivo é criar formas de governação das relações sociais que incidam mais no estímulo da produção intelectual e menos na restrição comportamental. É necessário sanar esta contradição para criar as melhores condições de funcionamento do sistema cognitivo individual e colectivo.

Portanto o que é uma boa função cognitiva? E como é que se consegue promover uma boa função cognitiva para cada cidadão?

Esse será o mote das próximas discusões neste blogue, para a qual conto com a participação daqueles que se interessam por esta questão, independentemente de qual seja a sua abordagem.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Dilema e uma moral ajustada

No que toca à capacidade cognitiva individual a estrutura de estímulos ambientais sempre foi muito complexa. Todavia as sociedades actuais são cada vez mais exigentes. São-no porque a estrutura de estímulos que constitui o quotidiano de cada um de nós é hoje mais complexa: o nosso contexto é diverso, instável e incoerente.

Os nossos quotidianos exigem que se trabalhe com gente e equipamentos diversos, cujas formas de funcionamento se baseiam em diferentes pressupostos e em constante evolução. As figuras que estão nos cargos de poder estatais, das empresas, nas associações, etc., são substituídas por outras e com elas as instruções de funcionamento. Muitas regras sociais mudam rapidamente, inclusive são diferentes de lugar para lugar e de instituição para instituição. Isto é, nas nossas sociedades actuais as instruções emanadas pelo poder são multilógicas, tanto no espaço como no tempo.

Ora, em função do que foi dito no post anterior isto significa, por um lado, que existem inúmeras regularidades que nos circundam e nos solicitam respostas específicas e, por outro, que a composição lógica dessas regularidades surge frequentemente irreconciliável. Parece-me lícito afirmar que a convivência com a disparidade e incoerência ambiental exige muito de nós, uma vez que uma das missões do nosso cérebro é criar um sentido coerente acerca da nossa envolvente. Sabendo que a nossa organização cognitiva resulta da interacção com o nosso contexto só podemos concluir que a nossa mente é, hoje, muitíssimo fragmentada. Falo de fragmentação lógica, obviamente.

E não é tudo. Vivemos hoje em sociedades de produção: a nossa cultura é simultaneamente de produção em massa e inovação a todos os níveis. Seja para a economia, para a arte, saúde, educação e política é importante comunicar, inovar, produzir, aprender, tentar, colaborar, investir,... A cada cidadão é pedido que produza e reproduza bens, opiniões, ideias, e isso requer uma enorme capacidade cognitiva. É por isso que se diz que é mais importante estimular do que reprimir; que é mais importante fazer e falhar do que não arriscar. Estas instruções estão de acordo com as necessidades da cultura de produção, na qual manter uma boa função cognitiva, fluida, de baixa conflitualidade interna, é determinante.

Vivemos numa sociedade de produção que exige eficácia, logo adequação às especificidades de cada situação, e isso exige muita consulta e envolvência com o dito ambiente complexo. Todavia vivemos num ambiente disperso e incoerente que é em si mesmo um factor potenciador de conflitualidade lógica. Uma das consequências desse imperativo, de estreitar a relação com a realidade fragmentada é a necessidade de convocar recorrentemente inúmeros elementos lógicos diferentes e criar diferentes conjugações da estrutura de decisão (ou de poder). Pretende-se com isso adequar a estrutua de decisão a cada situação. Contudo, neste ambiente, com esta dinâmica, é comum convocar para a estrutura de decisão certos valores que entram em conflito. Isto é, na nossa sociedade confrontamo-nos frequentemente com dilemas que exigem grandes compromissos. Ora esses conflitos podem pesar e criar indecisão. E a indecisão é uma contrariedade no âmbito das sociedades de produção.

Portanto, quanto mais diversa e incoerente é a nossa sociedade mais difícil é estabelecer um sentido adequado para cada situação, mas a sociedade de produção exige prontidão nas respostas, logo conhecimento concreto para cada domínio específico da realidade, e isso é potenciador de conflitualidade interna. Esta dinâmica encerra inúmeros dilemas do nosso quotidiano.

Para lidar com esta sociedade precisamos de encontrar uma moral que nos congregue mas não nos encerre cognitivamente, que, não resolvendo o dilema, facilite a nossa convivência com as escolhas. Uma moral que nos incentive a ser multidimensionais e simultaneamente nos confira identidade. Uma moral que promova a boa função cognitiva, porque só desta forma vivemos adequadamente com o nosso meio.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Moralidade e nicho cognitivo

A nossa moralidade é composta por um conjunto limitado de elementos cognitivos. A sua organização é fundamental porque é central para o desenrolar da criatividade, sociabilidade e para alicercar a noção de identidade individual. A sua tarefa é instruir logicamente a função cognitiva do indivíduo, tanto ao nível do seu comportamento como do raciocínio.

A organização interna da estrutura moral e sua a relação com a estrutura de estímulos ambiental é determinante para a qualidade da função cognitiva.
Os elementos que a compõem provêm de um processo de selecção. É essa selectividade que prepara o indivíduo para lidar eficazmente com o seu ambiente natural, social e cultural. Só assim, resultante de um processo de aprendizagem permanente, se adequam as suas reacções às solicitações promovidas pela interacção com o seu contexto.

Do ponto de vista cognitivo podemos classificar a moralidade como a estrutura lógica que está no poder. Mas como disse no início a sua amplitude é limitada. A sua composição é o resultado de um processo de compressão* da realidade, através da escolha de certas regularidades que povoam a nossa envolvente e com as quais nos deparamos ao longo da vida. O seu resultado é sempre uma simplificação da estrutura de estímulos ambientais.

São pelo menos três as fontes que alimentam esta construção: as regularidades naturais, as regularidades culturais/sociais e aquelas regularidades que se geram a partir da nossa própria influência.

Esta última fonte sugere, para cada momento da nossa vida, a preexistência de estruturas éticas já formadas que não só condicionam o nosso próprio comportamento como também o comportamento dos outros e da matéria que nos rodeia. Portanto, nós também somos responsáveis pela organização da nossa própria estrutura de estímulos ambientais. No conjunto das relações específicas que se estabelecem entre a dimensão cognitiva interna e a dimenão externa forma-se um nicho cognitivo para cada indivíduo. Ou seja, a construção da nossa estrutura moral e ética também é condicionada, recursivamente, por essa situação.

Este processo de ascensão de certas regularidades ao topo da hierarquia cognitiva demonstra a sua estreita relação com um contexto específico. A nossa moralidade é sempre o resultado de uma trajectória individual, que é única. Essas estruturas foram originadas para responder a situações muito concretas da vida de um indivíduo e de uma comunidade, a sua universalização e essencialização posterior é um fenómeno político e cognitivo que muitas vezes desvirtua a sua função social original.

Toda a moralidade é construída a partir de um nicho ecológico e é apenas adequada a esse nicho.



*Sobre o processo de compressão cognitivo ler o «Quark e o Jaguar», de Murray Gell-Mann

sábado, 1 de agosto de 2009

Alain de Botton: A kinder, gentler philosophy of success

Alain de Botton examines our ideas of success and failure -- and questions the assumptions underlying these two judgments. Is success always earned? Is failure? He makes an eloquent, witty case to move beyond snobbery to find true pleasure in our work.


domingo, 26 de julho de 2009

A confiança e a sua relação com a capacitação individual, social e económica

Premissa 1ª: o valor de cada conteúdo cognitivo resulta e é o resultado da confiança que lhe é atribuído;

Premissa 2ª: a mente está organizada de forma hierarquizada, de modo que a importância/confiança de cada conteúdo cognitivo é variável;

Premissa 3ª: o grau de confiança num conteúdo é determinante na variação da sua taxa de replicação;

Premissa 4ª: quanto mais fluxos internos gera um coletivo mais propenso fica para promover a criatividade e inovação.

Se estas premissas forem verdadeiras podemos afirmar que uma das prioridades de qualquer sociedade, colectivo ou relação deve ser gerar confiança entre os seus elementos. Não sei se estão correctas, foram aqui colocadas sem qualquer validação científica. Porém, não deixo de considerar que neste espaço faz todo o sentido falar dos assuntos que me interessam, encaro o blogue como um lugar para ensaiar alguns pensamentos. As premissas que aqui apresento são contudo o resultado das minhas observações empíricas quotidianas.

Insisto, se a confiança gera capacitação individual, social e económica porque confere maior capacidade de acção, de raciocínio, comunicação e criatividade e se estas premissas correspondem, mesmo que aproximadamente, à realidade da dinâmica social e cognitiva, então o nosso país deve tornar prioritário o debate sobre formas e implementação de políticas de Estado e de regulação cultural que incidam no aumento da confiança entre os portugueses.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A importância das coisas

A nossa mente está estruturada de forma hierárquica. É óbvio, para qualquer ser humano algumas coisas são mais importantes do que outras.

Essa importância é comunmente atríbuida aos valores de cada indíviduo (ou dos valores partilhados pelos colectivos). Sem dúvida que os nossos valores, que se constituiem na nossa moralidade, ética, conjunto de interesses e competências, são responsáveis pela forma como se organiza hierarquicamente a nossa personalidade ou, por outras palavras, a nossa estrutura cognitiva. Mas não é a única.

A importância relativa que conferimos às coisas resulta da via interna, mas também é devida a causas externas. O nosso ambiente modula de forma determinante aquilo que consideramos importante, seja estrutural ou circunstancialmente. Embora, diga-se, pela reflexividade da nossa mente na sua relação com o meio esta separação seja extremamente fluída. Mas não deixa de ser relevante compreender que o que importa a cada individuo não é apenas uma questão de valores, mas também os assuntos com os quais se tem de confrontar com muita frequência.

É tão importante para a qualidade de vida de um cidadão ver o mundo evoluir de acordo com a sua moral ou com a sua ideologia, como a resolução de um problema muito concreto com o qual se debate no seu quotidiano. Para a qualidade de vida de um católico será tão importante constatar que se implementaram “boas” políticas de família como verificar que foi colocando um jardim onde anteriormente era um espaço abandonado; para alguém à esquerda a implementação de uma boa política social pode ser razão tão válida para se sentir melhor com o mundo tal como verificar que foi resolvido o problema de estacionamento na sua localidade. As políticas tal como as relações pessoais devem ter em conta que cada indivíduo valoriza certos aspectos por via da sua própria organização cognitiva, tal como valoriza outros aspectos porque os considera problemáticos e que, embora menos valorizados internamente, tem de lidar com eles com frequência no seu ambiente quotidiano.

Interiorizar esta visão é determinante para a forma como nos dispomos a avaliar o outro, seja no contexto individual seja num contexto de definição de uma prática política, porque nos permite compreendê-lo não só pelo que ele é mas também pela forma como o contexto o envolve e estimula. Para quem tem por objectivo criar espaços de conforto essa é uma questão absolutamente determinante.

domingo, 12 de julho de 2009

A epistemologia do mercado

Este artigo pretende discutir o mercado e a forma como os seus “amantes” o usam no seu argumentário político. Usando uma certa «Epistemologia do Mercado».

A epistemologia da ciência faz o mesmo para as ciência em geral: o positivismo surgiu como um movimento filosófico que via a ciência como uma comunidade neutra, objectiva, que tomava decisões independente do meio cultural que a envolvia. Os apologistas do mercado fazem o mesmo: interpretam as reacções do mercado como se fossem reacções independentes do seu contexto. Isto é, apresentam argumentos do tipo: o mercado evoluiu para aqui, portanto a sociedade deve reorganizar-se de forma a responder positivamente às aspirações do mercado para beneficiar o ambiente de negócios. Depois, associado a este tipo de lógica, são adicionados outro conjunto de afirmações como: são as empresas que criam emprego e/ou desenvolvimento, a política deve estar ao serviço das empresas, a política deve promover a sua competitividade.

Estes argumentos são muito fortes. São tão fortes que têm conseguido moldar a lógica das sociedades, convertendo-as, levando-as a aceitar tacitamente esta forma de pensar. A tal ponto, que muito do que se faz em política é ditado pela interpretação das reacções dos mercados.

Vejamos o exemplo concreto dos recibos verdes. Uma argumentação típica dos “amantes” do mercado é interpretar esta reacções do mercado, da expansão da contratação de serviços/trabalho por recibos verdes, como uma necessidade, emergente, de aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho. Esta interpretação, tal como a resposta do próprio mercado, é adequada à filosofia do sistema, vamos chamá-lo aqui pelo rótulo genérico, de capitalista.

É bom que se entenda que não me refiro à procura do lucro com qualquer censura moral. Pessoalmente defendo a criação do máximo de empresas lucrativas possível. Iremos verificar que a minha posição não diaboliza o mercado, pretendo apenas reposicioná-lo e questionar esta epistemologia que defende que uma das principais prioridades do estado é apresentar políticas que respondam às necessidades explicitamente apresentadas pelas empresas, leia-se mercados.

O problema da argumentação capitalista que relaciona de forma determinista o aumento dos recibos verdes, da flexibilidade e da capacidade concorrencial das empresas que operam no mercado, é fazer desse mesmo mercado, dos seus comportamentos e reacções, o equivalente ao que a biologia faz quando observa a dinâmica dos ecossistemas naturais. Como se não existisse uma diferença entre leis naturais e leis económicas. Independentemente da discussão epistemológica da objectividade, o mercado é uma construção humana e os ecossistemas naturais não são. A dinâmica biológica é independente da vontade e escolhas dos seres humanos, a dinâmica do mercado não. O mercado é o resultado de decisõese espectativas dos seus operadores, cujas comportamentos depende das suas interpretações. O comportamento do mercado é fruto da criatividade humana e as suas decisões do seu livre-arbítrio.

Defender que a proliferação dos recibos verdes é uma resposta do mercado, porque este exige maior flexibilização não é uma leitura económica errada. Isso é de facto o que diz o mercado. O que está errado não é essa interpretação, é tentar passar a ideia de que, primeiro, essa evolução era a única escolha que tinha o mercado e, segundo, que essa deve ser a única fonte de justificação para as decisões e orientação dos agentes políticos.

A filosofia que se instalou em certos domínios é que o mercado tem reacções naturais. E por naturais querem dizer reações que são independentes do “desenho” social, das políticas estatais, das espectativas dos gestores, da sua visão sobre as prioridades da gestão, da própria capacidade e funcionamento do mercado. Quando alguém favorável ao sistema capitalista diz que o mercado “pede” maior flexibilidade não está só a dizer que, na dialéctica entre mercado e sociedade (política), esses são os desejos do mercado. Pelo contrário, sugere que esta é a trajetória natural da sociedade e que esta deve satisfazer o mercado em nome da sua própria sobrevivência e desenvolvimento.

Mas não é isto tudo um argumento político? É. Mas podemos continuar centrados apenas na análise económica. O mercado pede flexibilidade porque se rege pela maximização do lucro e pela maximização da eficiência produtiva. É a sua lógica, é o seu racional. É um objectivo aberto e transparente. E na óptica da empresa tem sido sempre um objectivo salutar.

Mas tal como se diz muitas vezes sobre o diálogo social, onde por vezes se fazem políticas sociais para resolver problemas emergentes sem ter em conta os custos a longo prazo, também as empresas, demasiadas vezes, procuram o lucro sem ter em conta aspectos mais importantes e decisivos no longo prazo. A proliferação dos recibos verdes é uma decisão do mercado, mas essa escolha não é fruto de um comportamento "natural" do mercado. Essa decisão é uma entre as várias possíveis que o mercado pode tomar. E só foi possível enveredar por esse caminho porque a política criou esse sistema de contratação.

O custo de oportunidade pode ser aqui determinante nas decisões das empresas. E a oportunidade aqui é uma tomada de decisão para ganhar vantagens de curto prazo. Que do ponto de vista da gestão é perfeitamente lícita. As empresas em função da sua própria racionalidade usaram aquilo que tinham disponível para facilitar a sua acção, porque os recibos verdes permitem aumentar os graus de liberdade dos gestores, dando melhores condições para operar no mercado competitivo.

Mas será que essa decisão, com vista à própria rentabilização a longo prazo do próprio negócio e do mercado, era a melhor via? Ou foi tomada porque era mais fácil, porque estava facilmente disponível?

Se o mercado faz escolhas em função da arquitectura de mercado, que é desenhada pelo políticos e inerente à própria cultura (onde se incluem trabalhadores, empresários e outros), não é possível defender que o mercado funciona como uma “mão invisível”. A mão está lá, a montante ou implicitamente, a desenhar o tal ambiente e a moldar as decisões dos gestores. Todas as decisões políticas mexem com o mercado, com mais ou menos impacto. Inevitavelmente. Apoios à ciência, tipos de cursos criados, conteúdos dos programas escolares, leis de qualquer tipo, apoios à exportação, etc. Todas elas alteram as condições de procura e oferta de ideias, trabalhadores, empresários, produtos, etc.

A proliferação dos recibos verdes associado a uma interpretação determinista do tipo “mais recibos verdes é um sinal da necessidade de maior flexibilidade do mercado de trabalho” fez do mercado o grande "alimentador" de políticas. Os empresários, nas suas plataformas associativas, ao acreditarem legitimamente nesse argumento estão mais centrados em fazer política e menos em criar valor para o empresariado. Criaram uma certa obsessão acreditando, ou deixando passar essa mensagem, que a vida das suas empresas e dos trabalhadores vai ser um oásis depois de alterada a legislação do trabalho. Ao invés de aumentar a produtividade pelo aumento da riqueza, vitalidade ou dimensão dos seus mercados estão preocupados com questões de curto prazo e que não dependem deles próprios nem da sua competência. Aqui o debate é político e não económico.

É também um argumento dissociativo porque provém do facto da própria medida de criação dos recibos verdes ser uma medida política reclamada pelo mercado, o que sugere que esta é já a sua disposição que moldará as suas decisões e comportamentos, depois reclamam que a sua expansão é uma consequência natural das suas necessidades. Naturais?...

A dinâmica pode ser tão dissociativa que os agentes do mercado podem acreditar profundamente que o seu principal problema está no mercado de trabalho, dirigindo todo o seu esforço para uma luta política específica e disponibilizando-se menos para a discussão sobre a sua qualidade de gestão. Se o ambiente e cultura facilitam essas opções - como a do recibo verde - esse caminho pode ser seguido apenas por ser o “mais fácil”. Fazendo com que as empresas descurem outras vertentes do negócio: as vendas, a inovação, a eficiência administrativa, o posicionamento no mercado, a formação, as parecerias, etc.

Esse comportamento demonstra como a política faz o mercado e vice-versa. Ambos têm de cooperar e noutras ocasiões discordar. Por vezes é errado fazer certas alterações porque essa não é a escolha da sociedade. Embora uma sociedade responsável deva ter em conta a importância da promoção do ambiente propício para os negócios.

Contudo, em certas ocasiões isso requer desenhar um sistema global que seja propício para os negócios mas que não altere esse aspecto específico da vida social, mesmo que essa seja a espectativa do mercado. Um empresariado que se diz refém da legislação do trabalho é um empresariado passivo, sem criatividade nem força. Os agentes políticos que não são capazes de defender a sociedade do mercado, encontrando contudo soluções que sejam promotoras do desenvolvimento económico e das empresas também deve ser visto como passivo, sem criatividade nem força.

Não há mercado sem cultura, a eficiência do mercado também depende da cultura que o envolve. Uma coisa são os méritos da economia de mercado quando compete com uma economia de outro tipo, outra coisa é discutir a sociedade pelos méritos do mercado quando esta compete com outras economias de mercado. Aqui não basta usar o mercado como única fonte legítima (ou quase exclusiva) das políticas públicas. É nesse plano que devemos estabelecer a nossa discussão. Uma empresa com produtos inovadores, apetecíveis, que faz boas vendas, aguenta salários altos, falta de flexibilidade, etc. Nessas ocasiões aguentam um certo grau de ineficiências de vária ordem. Empresas que estão no limbo, essas sim estão sempre a procurar ganhar eficiência através dos mecanismos legislativos, descentrados da sua própria área de negócio.

Mesmo que exista a necessidade de adequar as leis do trabalho, não estou qualificado para afirmar isso, desconfio que os ganhos de produtividade com essa medida sejam marginais. Os nossos desafios estão dentro e fora das empresas, não me parece que se deva dar tanta atenção às leis do trabalho. Acho que isso nos distrai: à sociedade, aos políticos e aos empresários.

Portanto, o mercado é feito por humanos para humanos. Não é ambiente natural. O seu desenhos faz-se de escolhas. Existe e deve existir liberdade política para desenhar o mercado tal como consideramos mais justo, eficaz e certo.