domingo, 12 de julho de 2009

A epistemologia do mercado

Este artigo pretende discutir o mercado e a forma como os seus “amantes” o usam no seu argumentário político. Usando uma certa «Epistemologia do Mercado».

A epistemologia da ciência faz o mesmo para as ciência em geral: o positivismo surgiu como um movimento filosófico que via a ciência como uma comunidade neutra, objectiva, que tomava decisões independente do meio cultural que a envolvia. Os apologistas do mercado fazem o mesmo: interpretam as reacções do mercado como se fossem reacções independentes do seu contexto. Isto é, apresentam argumentos do tipo: o mercado evoluiu para aqui, portanto a sociedade deve reorganizar-se de forma a responder positivamente às aspirações do mercado para beneficiar o ambiente de negócios. Depois, associado a este tipo de lógica, são adicionados outro conjunto de afirmações como: são as empresas que criam emprego e/ou desenvolvimento, a política deve estar ao serviço das empresas, a política deve promover a sua competitividade.

Estes argumentos são muito fortes. São tão fortes que têm conseguido moldar a lógica das sociedades, convertendo-as, levando-as a aceitar tacitamente esta forma de pensar. A tal ponto, que muito do que se faz em política é ditado pela interpretação das reacções dos mercados.

Vejamos o exemplo concreto dos recibos verdes. Uma argumentação típica dos “amantes” do mercado é interpretar esta reacções do mercado, da expansão da contratação de serviços/trabalho por recibos verdes, como uma necessidade, emergente, de aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho. Esta interpretação, tal como a resposta do próprio mercado, é adequada à filosofia do sistema, vamos chamá-lo aqui pelo rótulo genérico, de capitalista.

É bom que se entenda que não me refiro à procura do lucro com qualquer censura moral. Pessoalmente defendo a criação do máximo de empresas lucrativas possível. Iremos verificar que a minha posição não diaboliza o mercado, pretendo apenas reposicioná-lo e questionar esta epistemologia que defende que uma das principais prioridades do estado é apresentar políticas que respondam às necessidades explicitamente apresentadas pelas empresas, leia-se mercados.

O problema da argumentação capitalista que relaciona de forma determinista o aumento dos recibos verdes, da flexibilidade e da capacidade concorrencial das empresas que operam no mercado, é fazer desse mesmo mercado, dos seus comportamentos e reacções, o equivalente ao que a biologia faz quando observa a dinâmica dos ecossistemas naturais. Como se não existisse uma diferença entre leis naturais e leis económicas. Independentemente da discussão epistemológica da objectividade, o mercado é uma construção humana e os ecossistemas naturais não são. A dinâmica biológica é independente da vontade e escolhas dos seres humanos, a dinâmica do mercado não. O mercado é o resultado de decisõese espectativas dos seus operadores, cujas comportamentos depende das suas interpretações. O comportamento do mercado é fruto da criatividade humana e as suas decisões do seu livre-arbítrio.

Defender que a proliferação dos recibos verdes é uma resposta do mercado, porque este exige maior flexibilização não é uma leitura económica errada. Isso é de facto o que diz o mercado. O que está errado não é essa interpretação, é tentar passar a ideia de que, primeiro, essa evolução era a única escolha que tinha o mercado e, segundo, que essa deve ser a única fonte de justificação para as decisões e orientação dos agentes políticos.

A filosofia que se instalou em certos domínios é que o mercado tem reacções naturais. E por naturais querem dizer reações que são independentes do “desenho” social, das políticas estatais, das espectativas dos gestores, da sua visão sobre as prioridades da gestão, da própria capacidade e funcionamento do mercado. Quando alguém favorável ao sistema capitalista diz que o mercado “pede” maior flexibilidade não está só a dizer que, na dialéctica entre mercado e sociedade (política), esses são os desejos do mercado. Pelo contrário, sugere que esta é a trajetória natural da sociedade e que esta deve satisfazer o mercado em nome da sua própria sobrevivência e desenvolvimento.

Mas não é isto tudo um argumento político? É. Mas podemos continuar centrados apenas na análise económica. O mercado pede flexibilidade porque se rege pela maximização do lucro e pela maximização da eficiência produtiva. É a sua lógica, é o seu racional. É um objectivo aberto e transparente. E na óptica da empresa tem sido sempre um objectivo salutar.

Mas tal como se diz muitas vezes sobre o diálogo social, onde por vezes se fazem políticas sociais para resolver problemas emergentes sem ter em conta os custos a longo prazo, também as empresas, demasiadas vezes, procuram o lucro sem ter em conta aspectos mais importantes e decisivos no longo prazo. A proliferação dos recibos verdes é uma decisão do mercado, mas essa escolha não é fruto de um comportamento "natural" do mercado. Essa decisão é uma entre as várias possíveis que o mercado pode tomar. E só foi possível enveredar por esse caminho porque a política criou esse sistema de contratação.

O custo de oportunidade pode ser aqui determinante nas decisões das empresas. E a oportunidade aqui é uma tomada de decisão para ganhar vantagens de curto prazo. Que do ponto de vista da gestão é perfeitamente lícita. As empresas em função da sua própria racionalidade usaram aquilo que tinham disponível para facilitar a sua acção, porque os recibos verdes permitem aumentar os graus de liberdade dos gestores, dando melhores condições para operar no mercado competitivo.

Mas será que essa decisão, com vista à própria rentabilização a longo prazo do próprio negócio e do mercado, era a melhor via? Ou foi tomada porque era mais fácil, porque estava facilmente disponível?

Se o mercado faz escolhas em função da arquitectura de mercado, que é desenhada pelo políticos e inerente à própria cultura (onde se incluem trabalhadores, empresários e outros), não é possível defender que o mercado funciona como uma “mão invisível”. A mão está lá, a montante ou implicitamente, a desenhar o tal ambiente e a moldar as decisões dos gestores. Todas as decisões políticas mexem com o mercado, com mais ou menos impacto. Inevitavelmente. Apoios à ciência, tipos de cursos criados, conteúdos dos programas escolares, leis de qualquer tipo, apoios à exportação, etc. Todas elas alteram as condições de procura e oferta de ideias, trabalhadores, empresários, produtos, etc.

A proliferação dos recibos verdes associado a uma interpretação determinista do tipo “mais recibos verdes é um sinal da necessidade de maior flexibilidade do mercado de trabalho” fez do mercado o grande "alimentador" de políticas. Os empresários, nas suas plataformas associativas, ao acreditarem legitimamente nesse argumento estão mais centrados em fazer política e menos em criar valor para o empresariado. Criaram uma certa obsessão acreditando, ou deixando passar essa mensagem, que a vida das suas empresas e dos trabalhadores vai ser um oásis depois de alterada a legislação do trabalho. Ao invés de aumentar a produtividade pelo aumento da riqueza, vitalidade ou dimensão dos seus mercados estão preocupados com questões de curto prazo e que não dependem deles próprios nem da sua competência. Aqui o debate é político e não económico.

É também um argumento dissociativo porque provém do facto da própria medida de criação dos recibos verdes ser uma medida política reclamada pelo mercado, o que sugere que esta é já a sua disposição que moldará as suas decisões e comportamentos, depois reclamam que a sua expansão é uma consequência natural das suas necessidades. Naturais?...

A dinâmica pode ser tão dissociativa que os agentes do mercado podem acreditar profundamente que o seu principal problema está no mercado de trabalho, dirigindo todo o seu esforço para uma luta política específica e disponibilizando-se menos para a discussão sobre a sua qualidade de gestão. Se o ambiente e cultura facilitam essas opções - como a do recibo verde - esse caminho pode ser seguido apenas por ser o “mais fácil”. Fazendo com que as empresas descurem outras vertentes do negócio: as vendas, a inovação, a eficiência administrativa, o posicionamento no mercado, a formação, as parecerias, etc.

Esse comportamento demonstra como a política faz o mercado e vice-versa. Ambos têm de cooperar e noutras ocasiões discordar. Por vezes é errado fazer certas alterações porque essa não é a escolha da sociedade. Embora uma sociedade responsável deva ter em conta a importância da promoção do ambiente propício para os negócios.

Contudo, em certas ocasiões isso requer desenhar um sistema global que seja propício para os negócios mas que não altere esse aspecto específico da vida social, mesmo que essa seja a espectativa do mercado. Um empresariado que se diz refém da legislação do trabalho é um empresariado passivo, sem criatividade nem força. Os agentes políticos que não são capazes de defender a sociedade do mercado, encontrando contudo soluções que sejam promotoras do desenvolvimento económico e das empresas também deve ser visto como passivo, sem criatividade nem força.

Não há mercado sem cultura, a eficiência do mercado também depende da cultura que o envolve. Uma coisa são os méritos da economia de mercado quando compete com uma economia de outro tipo, outra coisa é discutir a sociedade pelos méritos do mercado quando esta compete com outras economias de mercado. Aqui não basta usar o mercado como única fonte legítima (ou quase exclusiva) das políticas públicas. É nesse plano que devemos estabelecer a nossa discussão. Uma empresa com produtos inovadores, apetecíveis, que faz boas vendas, aguenta salários altos, falta de flexibilidade, etc. Nessas ocasiões aguentam um certo grau de ineficiências de vária ordem. Empresas que estão no limbo, essas sim estão sempre a procurar ganhar eficiência através dos mecanismos legislativos, descentrados da sua própria área de negócio.

Mesmo que exista a necessidade de adequar as leis do trabalho, não estou qualificado para afirmar isso, desconfio que os ganhos de produtividade com essa medida sejam marginais. Os nossos desafios estão dentro e fora das empresas, não me parece que se deva dar tanta atenção às leis do trabalho. Acho que isso nos distrai: à sociedade, aos políticos e aos empresários.

Portanto, o mercado é feito por humanos para humanos. Não é ambiente natural. O seu desenhos faz-se de escolhas. Existe e deve existir liberdade política para desenhar o mercado tal como consideramos mais justo, eficaz e certo.

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